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Se é para acabar, que seja criando

  • jurigol
  • 3 de jul.
  • 2 min de leitura

Parto do presente como quem parte de uma ferida aberta. Do vazio que não é ausência, mas excesso de ruído. Parto do fim — esse que não avisa, que não explode, mas se arrasta. Invisível, diário, miúdo. Parto da estase que chamam de vida normal, mas que é só um torpor bem produzido.


Vivemos no delírio de que o fim do mundo é espetáculo. Tela gigante, som estourado, colapso com efeitos especiais. A ficção do apocalipse alheio, exportado de Hollywood, onde tudo acaba longe: Manhattan em chamas, criaturas metálicas vagando entre ruínas. Corpos sem alma, máquinas com função.


Só que o fim não chega assim. O fim já está. E é sutil. É quando não se sonha mais. Quando se rola o feed em silêncio. Quando o toque perde sentido. Quando a palavra não alcança. Quando tudo cansa.


Esses futuros-fim do mundo não são invenção — são sintomas. Armadilhas do olhar que nos sequestram por dentro. Nos convencem de que tudo já está perdido — então pra quê desejar? Pra quê imaginar?


E essa é a violência mais funda: nos ensinarem a não querer. Nos treinarem para o tédio, para a obediência, para a repetição. Nos programarem para a anestesia. Como se viver fosse aguentar.


Mas há quem recuse. Quem trincou por dentro, mas ainda sente. Quem desconfia que há outro jeito de existir — um jeito menos produto e mais presença. Quem sabe que o corpo não é ferramenta, mas oráculo. Não é máquina, mas portal.


É preciso reencantar.

Mergulhar em si como quem desce um rio escuro, onde cada curva é risco e revelação.

Onde o medo é bússola e o fundo é fértil.

Onde o escuro é útero — e não ausência.


O labirinto é o caminho. Não há mapa.

A criação verdadeira não vende ingresso.

Ela exige perda, entrega, falha.


Ela nasce do rasgo, da febre, do espanto.

Ela não se streama.


O mundo só pode nascer de novo através dos corpos que ainda sentem.


Quem sente, move.

Quem move, transforma.

E quem transforma, desobedece. Ainda há tempo para desobedecer!


É tempo de desacelerar o fim —

desligar os roteiros prontos,

queimar os manuais de esperança plastificada,

e reescrever o real desde o delírio lúcido dos afetos.


Se estamos no fim da imaginação por um lado, por outro

Estamos no começo do gesto que ousa imaginar apesar de tudo.

Do desejo que resiste, mesmo exausto.

Do corpo que ainda pulsa — mesmo ferido.


Criar a partir desse agora, é insubmissão em ato.

É lembrar que o mundo não termina na ausência de futuro —

mas na ausência de sensibilidade.


Se é para acabar, que seja criando.

Mas não criando qualquer coisa, de forma mecânica e forçada.

Criando mundos onde ainda se pode habitar com alma, espontaneidade, alegria.

Onde ter calma pode ser rito.

Onde a escuta prevalece sobre a necessidade de falar


E onde dependamos de muitas outras formas de linguagem, para que possamos respirar juntos o mesmo ar.



 
 
 

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