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Sujeitar-se à criação

  • jurigol
  • há 5 dias
  • 4 min de leitura

Não é simples falar de si.

Nos repetem que isso é vaidade, exposição desnecessária, ego inflado.

Mas se olharmos de perto, vamos ver que esse silenciamento tem história.

Tem método.


A estrutura que domina — patriarcal, colonial, capitalista — não quer mulheres como autoras de suas próprias narrativas.

Ela quer que a gente repita.

Que a gente reproduza o que foi dado.

No entanto quando uma mulher começa a organizar a própria experiência em linguagem, algo escapa ao controle.

Isso passa a ser político.


A criação visual entra aí — como um modo de pensar sem pedir tradução imediata.

A imagem, a forma, a cor: tudo isso pode carregar o que ainda não sabemos dizer.

E não precisa fazer sentido.

Não precisa ter técnica.

Só precisa ter corpo.


A tela, ou qualquer outro suporte, vira espaço de elaboração. Não de um “eu ideal”, mas daquilo que está em crise, que quer movimento.

Porque o que incomoda — ser mãe, não ser, estar em dúvida, sentir-se deslocada, cansada, cheia de raiva ou de medo — tudo isso é matéria-prima para criarmos.

Matéria viva.

E, como diz Rita Segato, nossa subjetividade é constantemente atravessada pelas violências do mundo.

Mas também pode ser lugar de invenção.


Criar é uma forma de reorganizar o caos.

De devolver forma ao que a linguagem dominante desfigura.


Silvia Federici mostrou que o corpo das mulheres foi expropriado — que o capitalismo começou pela apropriação da nossa capacidade de gerar, de cuidar, de fazer com as mãos.

E que nos separaram da nossa potência criadora justamente para nos tornarmos funcionais à lógica do acúmulo.


Então, quando a gente se expressa fora disso — fora do controle da utilidade, fora da lógica da produtividade — a gente já está mexendo na base da estrutura.

Criar, nesse sentido, é um gesto de autonomia.

É também uma forma de cuidado.


Maria Galindo fala de um feminismo indisciplinado. Um feminismo que nasce do chão, da contradição, do erro, da mistura. Não de manuais. Mas da vida real. A criação é parte disso: não como terapia, mas como prática de consciência. Como modo de reexistência.


A pergunta então deixa de ser “como faço algo bonito?”

E passa a ser:

o que preciso colocar para fora agora?

o que está pedindo passagem?

o que esse incômodo está tentando me dizer?


O que proponho aqui é um espaço onde isso seja possível.

Um lugar para criar sem obrigação de agradar, explicar ou finalizar.

Sem a pressa da lógica capitalista.

Com tempo, com presença, com espaço para o que ainda está em processo.


Expressar-se, nesse contexto, é também uma forma de formar pensamento.

E pensamento que nasce do corpo, da experiência, da contradição — é potente.

Porque ele não repete.

Ele cria fissura.


E é por essa fissura que o novo pode entrar.


Pintar serve para lembrar

para voltar ao corpo.

para voltar para si.


Durante tanto tempo nos ensinaram a calar.

A silenciar a raiva, o prazer, a dúvida, o querer.

A romper com o próprio desejo para caber em formas inventadas por outros.


O regime de dominação — que une gênero, raça e patripoder — nos amputou do nosso próprio centro.

Nos separou da nossa história, do nosso sentir, da nossa linguagem.

Mas quando uma mulher começa a se narrar, algo se move no mundo.

Relatar-se, como lembra Rita Segato, é um gesto de insubordinação. É dizer: eu estive aqui.

Eu sinto assim.

Isso me atravessa, me perturba, me forma.


E se relatar é escrever com palavras, pintar é escrever com o corpo.

A tela vira confidente, espelho, abrigo.

Ela não exige coerência.

Aceita a contradição, a fúria, o cansaço e a delicadeza.


Silvia Federici nos mostrou que o capitalismo intensificou a lógica patriarcal:

nos separou da terra, dos ciclos, das outras mulheres e de nós mesmas.

Na pintura, desfazemos esse corte.

Criamos espaços onde o tempo não é produtividade, mas presença.

Onde o gesto não é técnica, mas linguagem das entranhas, das vísceras.

Onde o erro vira caminho e a mancha vira verdade.


E então vem a pergunta:

O útero, esse espaço simbólico e real — te prende ou te liberta? Talvez dependa de quem narra.

Talvez, na arte, possamos reaprender a escutar esse lugar de dentro.


Reivindicar o corpo não como território de dor, mas de criação/invenção consciente.


Maria Galindo propõe uma pedagogia que nasce da experiência viva.

Uma escola sem sala, onde o currículo é tecido com afetos, memórias, revoltas e sonhos.

Um feminismo encarnado, cotidiano, sujo de tinta, cheio de dúvidas, sempre em movimento.


Pintar, aqui, não é sobre estética.

É sobre existência.

Sobre afirmar que há uma inteligência no sentir, uma filosofia no afeto, uma política na delicadeza.


É sobre escutar o incômodo —

porque no incômodo mora a pergunta.

Ser mãe, não ser. Ser negra, ser branca, ser periférica, ser trans, ser em crise.

Tudo isso nos atravessa.

E o que nos atravessa, também nos forma.

E o que nos forma, precisa encontrar caminho para sair.


Por isso, esta prática de autoexpressão não é luxo, nem distração: é necessidade.

É um modo de sustentar a vida em tempos de esvaziamento.

De criar laços onde tudo pede separação.

De voltar a si, não para isolar-se, mas para poder estar inteira no mundo pronta para tecer redes de apoio e sororidade.


Este espaço é para isso.

Para narrar-se em cor.

Para dizer com imagem aquilo que a linguagem não alcança.

Para lembrar que somos protagonistas da nossa própria história — não vamos pedir permissão.




 
 
 

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