- jurigol
- 5 de jun. de 2024
Atualizado: 27 de jun. de 2024
Era uma vez a criatura do medo,
Fantasiava-se de ambivalência todos os dias,
vivia só
Sua vestimenta de contrários era a substância para o seu imaginário
Cheia de certos e errados, feios e bonitos e ausência total de espantamento,
que produziam em si uma inflexibilidade própria, rigidez flácida, desesperança, malignidade silenciosa
Era do que a criatura do medo vivia
Tinha uma estrutura física humana,
De uma parte, era dotada de sensorialidade animal, inteira de potência imanente, porém anestesiada.
De outra, infindáveis estímulos.
Mantinha-se em alta tensão, insensível
O corpo da criatura do medo fora alienado de si,
maliciosamente doutrinado a detestar o descanso e a contemplação,
não deveria parar, nem pensar nisso,
quanto mais amar.
Vivia no limite.
Capacidade marcada de fazer a distinção imediata de fuga e perigo,
constantes ideias de desejos, fugazes.
Assim, a criatura do medo ia crescendo.
Vestindo-se de ambivalência,
Ia arrastando o tempo, vivendo de ilusões momentâneas
Não percebia, que, sagaz, era a sedução da servidão voluntária, que ia assumindo diferentes formas de necessidades e pretextos
A criatura do medo pensava em mudar.
Precisava de tempo.
Quem tem? Ela perguntava.
A vida é assim mesmo, aguenta!, sussurravam os mandantes.
Raiva, apatia, melancolia, irritação, cansaço, impulsividade, agitação, compulsividade, vícios, dependência de algum tipo inventado de importância.
Vivia nas reminiscências de um tempo de subordinação ao invisível.
Tinha também, muitas vezes, palavreados rebuscados, força para convencer uma nação a defender territórios de alienígenas exterminadores.
A criatura era um tipo de imitação de gente
Pensava-se livre, submissa a própria neurastenia
Cercava-se de alaridos, era ótima seguidora, achava inspirador seguir, aliada de ideias de rebeldia e revolução aos quatro ventos.
Competição constante
Dependente de algum tipo de ovação, mesmo irrisória no campo das ideias, para respirar na sua fantasia.
Impotente, servia voluntariamente aquilo que mais a constringia
Ora era mártir dela própria, ora em modo espera de um salvador,
Esturricada na sua fantasia, a criatura do medo queria só olhar pra frente, planejar conquistas, destaques.
Não suportava o momento presente, o agora.
Sustentava-se de engajamentos alheios, cada vez mais provocantes.
Dava tudo de si enquanto corria de variadas formas diferentes na roda do rato de sempre.
No entanto, um dia, o corpo da criatura do medo implorou por atenção, clamou por um novo olhar, protestou por importância.
Esse bicho esquisito, que viajara no imaginário coletivo por séculos
Enjaulado, invisibilizado, humilhado, violentado, queimado, acorrentado,
Agora gritou
sedento, faminto…
Lembrava de memórias da infância, “corpo abjeto, imprevisível de desejos, contenha-o!, ser uma criatura espontânea tornará perigosa a tua vida”, disseram-lhe
A criatura do medo tinha sido provocada, era tarde demais pra voltar atrás
Passou a estranhar a sua adestração dentro daquela fantasia,
Passara a desconfiar do seu apertamento
Descobriu então os sentidos naturais, abaixo da roupa que vestia, a pele, o tempo na suas formas
Descobriu algo de mais vivo, antes ajustado e contido no disfarce
Ganhou entendimento sobre o corpo-lugar,
território sensorial que enraíza o pensamento, a imaginação e suas consequências incontáveis.
Viu que sua fantasia não era o todo dela
Deu-se conta que a tal fantasia da ambivalência, trazia junto dela história de guerras, domínios, violações e silêncios
Perguntou-se por que oferecia-se facilmente ao sequestro da sua autonomia?
Convocou então a sua ousadia, curiosidades, ímpetos, atrevimentos para aventurar-se na busca de algo novo
Problematizou as suas tensões, ganhou perspectivas amplas que foram dando a criatura uma condição de protagonismo maior
Um dia
o corpo da criatura foi casa de outro
Por meses sentiu que algo crescia dentro dela com uma força visceral, mesmo dentro daquela fantasia, cada vez mais apertada
A vida crescia, estava vindo dela, passaria por ela
Muitas vezes ela se perguntou como conseguiria tirar aquela fantasia para receber a vida nova?
Um dia, a vida nova chegou,
por algumas horas ela conseguira se desnudar, deixou de lado aquele disfarce.
Foi mágico.
Momento de vida revelador.
Não sentia tensões, era como um tipo de derretimento onde seu corpo e o que estava fora dele fosse uma coisa só.
Não via o mal, fora dissolvido.
Era uma sensação muito profunda de integridade capaz de abraçar contornos amplos, afagar, incluir, doar com facilidade
Grandeza imanente,
Em forma de paz, harmonia
Entendera sem esforço sobre a sua verdadeira origem, seu lugar de criatura humana no mundo natural.
Aa pirâmide que vira claramente não era humana.
A criatura do medo, por vários meses buscou integrar todos esses saberes, amava seu corpo nu agora.
Aguçou todos os seus sentidos e percebera que o mundo não acompanhou o seu fluxo.
Ela tinha vivido um mundo fundido de passado-presente-futuro
Tinha vivido algo profundo que a transformara!
Quem acreditaria nisso?
Cercada das gentes fantasiadas
Quis dizer que haveria de arretar, sentir o próprio corpo, nadar para dentro de um mar furioso, arriscar-se à intensidade de um tsunami
Disse que era excruciante, apavorante,
era um salto de um precipício onde não vê-se o fim
Era depois do risco.
Também haveria de soltar, de deixar ir, deixar morrer,
mas a revelação estaria lá, depois disso tudo vivido.
Passou a ser criteriosa porque tinha que compartilhar aquela revelação, e ao mesmo tempo, deveria resguardá-la, salvá-la do banal, da captura utilitária do mundo da gente aquela.
Ela insistiu, mesmo assim, contou que era acessível, entretanto não era uma experiência fácil de viver. Haveriam de lutar para tê-la!
Deveriam usar a fantasia somente para inventar e sair da solidão.
Era a vida,
a vida que pedia mais vida.
Era do corpo fêmea da criatura,
da sua imaginação
e deveria fazer jus a isso para ir além,
porque aquilo era o novo começo.