Entre a Escolha e a Subjugação
- jurigol
- 18 de set.
- 8 min de leitura
Atualizado: 19 de set.
Desde que deixei pra trás minha profissão e carreira, ao me lançar de cabeça na vida imigratória, me dedico a outras formas de viver e pensar. Dos trabalhos institucionais aos atravessamentos cotidianos, passei a refletir profundamente sobre a cultura hegemônica e como ela, através de seus dispositivos familiares-afetivos, escolares e econômicos, estrutura, congela nossos paradigmas e passa a regular a nossa percepção sobre nossa autonomia.
Há um ponto de virada simbólico importante no momento em que conseguimos parar e nos perguntar: “Peraí, isso faz sentido para a minha experiência de vida? É dessa forma que quero viver? Se eu morrer amanhã, é assim que gostaria de ter vivido a minha historia? Minhas escolhas estão baseadas na minha vontade consciente ou em medos sem nome? Ouso olhar nos olhos do medo e perguntar: o que o senhor quer de mim? - na tentativa de nomear e confrontar consigo mesma (?)"
As respostas que emergem serão pessoais, singulares. Porém, invariavelmente, nos levam a questionar o que está posto até ali, e nos empurram para direções e atitudes que irão friccionar a suposta ordem natural das coisas. E é preciso coragem — e alguma fé — uma vez que, ao discordarmos das forças que sustentam o macrossistema econômico e social vigente, nos deparamos com as muitas camadas de censuras e interdições que se impõem sobre um devir-mulher mais autêntico.
Tenho interesse por temas como dominação, interditos subjetivos e dispositivos de controle — não apenas como objetos de estudo, mas refletindo sobre a realidade que me atravessa pessoalmente há muito tempo.
Como mulher branca, classe média, brasileira, joguei o jogo com o "livro das regras" debaixo do braço. Estudei durante anos, trabalhei, estudei ainda mais, e cumpri todos os passos que, supostamente, me garantiriam uma vida de trabalho minimamente estável, reconhecida e digna. Até que percebi que, daquele lugar de onde eu enxergava minha vida, o caminho adiante era de esgotamento e de uma existência comprimida e normatizada.
Difícil afirmar isso sem me sentir meio ingênua e desavisada — mas tenho que ser honesta. Sempre quis parir e criar os meus filhos. Não achava interessante o modelo das crianças em creches, com empregadas, cheias de horários e pressas, e veja, não é uma crítica alienada, porque observo a saga que as mulheres vivem para criar seus filhos sem condições e suporte. No entanto, até ali eu pensava, se não for uma pessoa com as minhas características, que estudei, que pude buscar algum conhecimento sobre a infância, experiência de vínculo, opressão estrutural de gênero (com a invisibilidade do trabalho doméstico e de cuidado), que tenho um parceiro comigo, a bancar e sustentar escolhas incomuns na minha geração, quem mais seria (?).
Quando começamos a reunir forças para morar fora do país, essa reflexão estava presente: como criar espaço para viver a maternidade de forma inteira, sem a pressão do mercado, da produtividade e da aceleração que eu já conhecia (e detestava)?
Saímos do Brasil com o desejo genuíno de construir outra realidade: uma vida mais expandida, com mais tempo para o bem viver, viagens para aprender sobre outras culturas, outras línguas — abrir outros horizontes. Quando nosso primeiro filho nasceu, a pressão para retornar ao velho caminho reapareceu com força. Foi ali que vivi uma crise de identidade profunda. Não queríamos deixá-lo numa creche o dia todo para seguir vidas normativas que já sabíamos onde iriam dar. Então, decidi abrir mão de continuar naquela trajetória que já tinha me mostrado seus limites em termos de prazer, estímulo e sentido.
Foi nesse ponto que senti com força o peso simbólico da cultura operando ao meu redor — especialmente na forma como a minha escolha de priorizar meu tempo de mulher-mãe foi interpretada. Em vez do reconhecimento como um gesto de coragem, autonomia, foi lido como um gesto de alguém que se rebaixou a vida de dona de casa, que desistiu, que não teve força para continuar, que teve preguiça, que vivia fora da realidade do mundo. Isso, mesmo já tendo tido uma vida supostamente adulta de pagar as próprias contas, com trabalhos de algum valor social, eu imaginava, como docente, enfermeira obstétrica, pesquisadora.
Mais do que isso: o simples fato de eu ter me tornado economicamente dependente do meu companheiro — mesmo dentro de um projeto comum, discutido, desejado e encampado por nós dois — passou a ter mais peso na percepção social do que todo o trabalho imenso, extremamente repetitivo, cansativo, cotidiano, cheio de imprevisibilidades, que é criar um filho nessa sociedade sem redes afetivas de apoio não pago. Como se depender financeiramente do parceiro anulasse insidiosamente meu intelecto, minha força de trabalho e o pleno agenciamento da minha vida adulta.
O trabalho de cuidado, essencial e estruturante, continua sendo desvalorizado porque escapa à lógica imediata de mercado, inclusive pelas próprias mulheres, que majoritariamente o pratica. Mas é justamente ele que sustenta, silenciosamente, o funcionamento da vida social, como já sabemos. Ao cuidar, contribuímos - de forma concreta - para a saúde integral dos nossos filhos. Isso tem impacto direto nos sistemas públicos de saúde, educação e segurança. Crianças cuidadas e brincantes tendem a adoecer menos, a se desenvolver com mais equilíbrio e a demandar menos do estado ao longo da vida. Ainda assim, a cultura hegemônica insiste em valorizar apenas o que é contabilizado como capital. O que está em jogo não é apenas poder, mas autoridade simbólica, mensagem clara de reconhecimento de valor social. E foi essa distorção que me atravessou com força, me fazendo questionar: desde quando sustentar a vida — com todas as implicações cotidianas vividas por todas nós, do tempo despendido na organização, planejamento, execução — é menos importante do que sustentar uma conta bancária?
Enquanto éramos somente nós dois no mundo, vivíamos a realidade de dois adultos autônomos juntos, cujo foco era cada um na sua vida, com a libido no trabalho e as partilhas no tempo livre. Com filhos, saímos do centro.
Claro que se prover segue sendo importante e indispensável, inegavelmente. Mas temos que ir além pra refletir. Somos provocados a um movimento de amadurecimento intenso, já que nossas necessidades passam a vir depois da febre do filho, do sono do filho, das necessidades do filho.
Somos nós que negamos essa realidade, ou é uma sociedade que opera numa lógica autoritária nos removendo do poder concreto e simbólico contido nessa experiência, que é numericamente feminina e cotidiana?
Porque continuamos a negar isso as custas de uma subordinação simbólico-prática sem nos afirmarmos desde o nosso lugar de corpo não máquina?
Porque aceitamos sem reclamar a separação do mundo doméstico e do trabalho, se para as mulheres os dois partem de um mesmo ser que só acumula responsabilidades?
Porque aceitamos uma hierarquização que privilegia o mecanicismo e uma racionalidade linear?
O que acontece com a nossa percepção e a nossa capacidade de nos colocarmos nas relações afetivas, de forma a bancar a nossa inteireza sensível - não silenciando o que se sentimos e queremos que nos aconteça quando criamos nossos filhos?
Porque a cultura nos inferioriza quando colocamos essas condições fundamentais primeiro? Se meu corpo, minhas horas de existência estarão ao dispor de uma experiência que é social, em teoria fomentada, porque a cultura vai exigir e esperar de mim (e de nós) que eu cuide, zele, me dedique sem demandar nada em retorno?
O que leva as mulheres a repetirem narrativas desmembradas da experiência sensível que é o processo da criação dos filhos em prol de confetes patriarcais, cujos aplausos parecem condicionados a termos que abrir mão do que se passa em nossos corpos e ciclos para termos a mesma valorização social?
Porque nos tardamos tanto a integrar a nossa potência sexual e reprodutiva ao nosso intelecto dentro das nossas realidades em grandes bandos, senão, pelo interdito que nos é colocado através das regras do jogo patriarcal que vai me dizer que só serei boa o suficiente quando fizer isso e aquilo, mas que todas nós sabemos que nunca seremos suficientes numa cultura estruturalmente misógina e racista, porque não vamos matar gentes deliberadamente por território, porque a violência não nos constitui, porque sangramos, engravidamos, parimos, amamentamos. Nossa constituição é de conexão com vida, com a inclusão e nunca com a matança como justificável ou afirmativa. A alienação de nossa condição tem nos levado a consequências macrossistêmicas terríveis.
A cultura nasce de nós.
Porque nos tardamos em romper com a opressão e exploração estrutural a partir de nós mesmas no antro familiar, e também em rir juntas do quão fomos inocentes um dia?
Somos nós que vivemos e encarnamos no corpo as transições e amadurecimentos sociais. Qualquer mulher sabe que a criação das crianças demanda por um componente altruísta imenso, que o prazer da experiência pode ser facilmente esvaziado por conta das dificuldades cotidianas. Portanto, quero deixar pra lá essencialismos que beiram a bestialização das mulheres.
Há ainda outro aspecto importante não descolado de culpas e julgamentos: a recusa da lógica da tripla jornada. No meu caso — como de muitas outras mulheres — essa escolha não veio da passividade ou da fuga, mas de uma reflexão madura sobre o tipo de vida que desejo sustentar. A emancipação que busco transcende o capital. Imigrar, pra nós, que tínhamos uma vida profissional, nunca foi sobre sobrevivência, e sim sobre ter o tempo da vida de volta. Trabalhar sob pressão e estresse constante num sistema exploratório cada vez mais vulnerabilizador, sem direitos sociais, cuidar de filhos, gerir a vida familiar constantemente, tentando manter mal e porcamente algum resquício de saúde mental e um corpo in shape para gringo ver, como ideal de independência feminina? Que grande armadilha. Como disse Silvia Frederici numa entrevista: “Não, não estamos emancipadas, estamos cansadas e em crise”.
Não aceitar esse modelo não significa se apagar ou se acomodar. Sou uma feminista e jamais diria para uma mulher ter filhos, quanto mais a depender de um parceiro machista ordinário, coisa bem comum, infelizmente. É, ao contrário, reivindicar uma postura soberana, deliberada, sobre o próprio tempo, o próprio corpo e o próprio desejo. Provocar o sistema patriarcal de dentro do lugar de onde ele nasce, onde a mulher-mãe se afirma não subjugada ao poder que o dinheiro evoca, é afirmar que a vida criativa, a saúde emocional e a liberdade de presença no cotidiano têm valor central. Que podemos nos postar no mundo a partir de uma escolha consciente e não submissa. E que isso não nos faz menos radicais em nossos pensamentos de justiça social, menos feministas, menos capazes.
Muitas de nós estamos tentando romper com essa engrenagem que só nos suga. E nesse rompimento há grandes desconfortos, mas também há espaço para recriar o mundo a partir de outras lógicas afetivas e sustentáveis.
Se a busca por independência através do acesso ao capital pela via do trabalho, por si só, não é necessariamente emancipatória — uma vez que, para acessá-lo seguimos subordinadas às instituições patriarcais, financeiras e produtivistas — então, o que pode nos libertar, ou ao menos nos mover para além da repetição da dominação/submissão a hierarquias que nunca irão nos beneficiar a longo prazo?
Para mim, a arte tem sido uma fonte de poder. A arte demanda pela nossa soltura. Ela nos treina para a liberdade. Ela implica risco, presença, corpo, imaginação. Ela opera por deslocamento, subversão, transgressão. Ela desorganiza as normas que nos colonizam por dentro. A arte — seja ela qual for em exercício, nos devolve a autonomia do gesto, do tempo, do desejo. Como dizem na minha terra, é pequeno, mas é grande.
Enquanto o capital é condicionado a sistemas artificiais que nos classificam, controlam, normatizam, hierarquizam, experimentar-se na arte pode ser o campo onde um corpo emancipado experimenta ser. Um corpo que não está a serviço, que não se explica, que não se justifica, que sente, que move, que cria mundos e reencantamento através do exercício da percepção. E isso é profundamente revolucionário. Da subjetividade encarnada como gesto político, a vida cotidiana como espaço simbólico de fomento e insumo criativo.
Criar filhos transcende a gaze patriarcal quando uma mulher habita o tempo de criação para se recriar subjetivamente ao seu próprio modo e prazer. Essa é uma virada importante. Se dar permissão, se ofertar, não conceder aquilo que é nosso por direito. Assim criamos novos mundos, criamos fugas, desvios.
Habitar os desconfortos há de ser a morada da nossa autonomia. Há de nos servir para criarmos formas mais expandidas de encontrar sentido, satisfação, comunhão, sem obedecer a ordem de precisarmos estar submetidas e ter que sofrer para merecer fruir.









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