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Se não eu, quem?

  • jurigol
  • 13 de set.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 29 de set.

(Escute junto com a leitura) Antes de me chamar de artista, fui enfermeira obstétrica. Naquele ofício, encontrei o sagrado no toque, na capacidade de estar junto a alguém que sofre das coisas do carnal, na força do corpo que gera vida, na potência silenciosa das mulheres que atravessam o parto. Amava profundamente meu trabalho, mas ele era uma dança constante de resistência às forças hegemônicas que querem controlar, domar e definir o percurso criativo de uma mulher através da objetificação do corpo e das interferências desnecessárias no nascer. Eu me exigia para prestar um bom cuidado, mas sentia o peso insidioso da opressão institucional.

 

Então, um dia, decidi me afastar da prática clínica, acadêmica e científica para me lançar em peregrinação carregando a seguinte pergunta “o que mais eu amo fazer, para além de ser enfermeira, pesquisadora, professora?”— um tipo de expedição que exigiria uma investigação mais profunda, na arte, mobilização e escuta de uma camada mais sensível, menos óbvia, mais escondida do meu desejo. Entrei num território incerto, onde o risco de buscar sentido era maior, a solidão, mais densa, e os lutos, inevitáveis.

 

Até hoje me pergunto de onde tirei força pra dar um cavalinho de pau tão decisivo…? Se mal sabia o quão difícil seria o caminho. Lembro naquela época que tinha uma impulsividade e uma excitação familiar, como uma memória sensorial de pular na parte mais funda da piscina de um trampolim quando criança pela primeira vez. A gente sabe nadar, mas saltar lá de cima, cair no fundo daquela água, ter que subir sozinha à superfície e nadar até a borda por conta própria é uma aventura e tanto. Foi um impulso de um lugar mais profundo — algo mais ancestral que sussurrava que era hora de seguir o fluxo da vida descarrilhando o trem mesmo, rasgando o mapa, seguindo a minha intuição, meus próprios “huevos”.

 

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Lembro quando li essa linha de Clarice Lispector, como num encontro de muita sororidade, eu sabia de onde ela tinha escrito aquilo. Uma força, algo inominável mas que continha a vontade de experienciar, descobrir, desvendar. Demorei pra enfrentar as minhas próprias palavras, inventar meu próprio texto, usar as minhas próprias metáforas para dizer o que penso de uma forma interessante, já que me coloquei num não lugar para dizer quem sou. A maternidade certamente ancorou esse giro, porém nem por um segundo me acomodou. 

 

Tinha uma resistência enorme em (me)escrever. Cresci sem a confiança no gesto da escrita. Quando criança tive meu ‘diário’ roubado e lido sem a minha permissão. Acontecimento que me invadiu, me envergonhou. Entendi que era melhor guardar em mim. Foi assim com a minha dança também. Valorizo muito a minha privacidade, de existir num tempo-espaço só meu, que não obedece as lógicas externas. Quando a escrita voltou como gesto cotidiano, vivi novamente uma angústia muito grande. Tinha a impressão de que ao começar transcrever meus fluxos de pensamentos no papel eu não ia mais conseguir parar. Seria um movimento desenfreado onde eu poderia denunciar e vociferar todas as barbaridades, violências, silenciamentos, covardias, injustiças, abandonos, humilhações que vivi e testemunhei, e onde eu poderia me redimir comigo mesma, narrar em palavras (porque já pintava e já extravasava por lá minha necessidade auto-expressiva) o meu protagonismo e meu pensamento autônomo. 

 

“Não se nasce mulher: torna-se mulher.” Adoro essa linha, porque me lembra de perguntar: O que é ser mulher? O que me define como mulher? Ser chamada de fêmea é a mesma coisa? É ter um corpo com útero? É usar saia, salto alto, brincos coloridos e batom? Simone de Beauvoir teve muito a dizer sobre essa questão, apontou de forma até então não propagada, que a ideia de ‘mulher’ tem sido fabricada historicamente para ser o ‘outro’ da cultura binária, sugerindo que a compreensão clara a respeito disso, abre espaços para nos desafiarmos nos quesitos autonomia, independência, emancipação.  

Essa frase dela me ressoa como um convite — para (des)construir, para tangenciar a ideia de identidades impostas, para afirmar a própria existência com lucidez. É nesse espírito que entendo o que tenho vivido até aqui: uma marcha de desapego e reinvenção continua. Graças a companhia de mulheres que se afirmaram a partir de suas vozes e saberes não me sinto totalmente sozinha. Cada uma, destrinchando seus próprios interditos, encontrou uma maneira de elaborar a sua história singular.

 

Penso em Elza Soares, com aquela voz rasgada e força indomável, ecoando a potência de resistir e gritar: “não quero ser a mulher da casa, quero ser a mulher do mundo”- me ensinando sobre a relação da criação com a luta por soberania e um ato de amor-próprio. Maya Angelou, corajosa e doce, diz que persistir é uma forma de vencer: “Podemos encontrar muitas derrotas, mas não devemos ser derrotados.” bell hooks, que amplia essa visão e conecta a resistência ao amor, amor por si mesma, amor pelos que querem a libertação individual/coletiva e inventam novos caminhos para encontrar comunhão. Lélia Gonzalez, no estudando a ancestralidade, a política do corpo, que me evoca a ideia da criação como gesto ativo de revolução cultural.

 

Em resumo, entrar em devir-mulher não é um caminho isento de intensos desconfortos e exílios. O mundo quer que nos encaixemos, que nos remediemos, que nos anestesiemos com falsas soluções. A pressão é direta e indireta de todos os lados para que sejamos padronizáveis, previsíveis, transparentes e comparáveis. Tudo isso entretem, distrai e afasta qualquer pessoa do seu pulso criativo autoral e autêntico… 

Aí vem Clarissa Pinkola Estés a me falar do fogo selvagem, um aspecto da psique humana, que, mesmo soterrado por escombros normativos, nunca se apaga. Fica lá, como uma pequena brasa escondida. Precisa soprá-la com força para levantar a labareda e ter de volta o calor interno que aquece a casa toda. 

Não posso provar, mas sei que me habita um ritmo ancestral, uma força antiga que me dá um sustento profundo e insiste para eu ir devagar. A faceta quente do desejo de comunhão, que recusa a domesticação, que se autoriza a excentricidade, que se permite ressignificar noções de dependência/independência, que usa os próprios ‘ovários’ para seguir criando mesmo invadida de dúvidas

 

Eu sei que seguir esse fogo é adentrar um submundo aquático e profundo, onde não se enxerga com os olhos, onde é preciso de artefatos mais imaginativos e oníricos para encontrar respostas e novos caminhos de subida. É participar da vida com a sensação de ser maravilhosamente insignificante. Olhar pra arte, seus símbolos e representações como o grande conector de indivíduos, subjetividades e coletivos. Nesses momentos de vestir a pele de foca e imergir, eu faço uma honraria as essas companheiras invisíveis. Sentada a beira da fogueira na noite escura do exílio criativo eu agradeço a Clarice, a Simone, a Elza, a Maya, a bell, a Lélia e a Clarissa. Suas palavras, suas formas únicas, autênticas para falar das coisas mundanas, comuns, suas vidas como referência me acompanham e me desafiam a ser fiel ao meu fogo, a sabedoria do meu corpo, do meus ciclos, e confiar no meu pulso.

 

E é nesse caminho, entre movimentos e descansos, que eu me localizo. Numa espécie de ressaca dançante, experienciando o processo de aprender sobre meu próprio ritmo, des-cobrir outras formas e cores, suavizar a relação com o tempo — como parte de uma ritualística de autocuidado. Todos esses aspectos que dizem respeito à existência feminina encarnada em práticas de sabedoria. Tudo isso que todas nós merecemos, mas que não nos é dado de forma leve ou passiva — muito menos por direito. Tudo isso que, se não for eu a me conceder... quem é que me dará, né?



 
 
 

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