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O útero, cálice, formato de cabeça de boi (e chifres de trompas), esse órgão poderoso do corpo de fêmea mamífera, reduzido à sua função biológica, carrega em si uma força simbólica espetacular. Vem comigo e vamos brincar de metáforas. Ao longo de uma vida de amadurecimento, todo mês, impulsos, ideias e desejos muito estimulantes nos afloram, percorrendo uma trajetória de sorte e disposição à fecundação. Camadas internas de sabedoria, acolhimento e receptividade são formadas na função de sustentar, dar substrato para que algo eleito germine e se desenvolva. Essas ideias carregam em si a potência de sementes. Seja pela fecundação literal ou figurada, o processo é sempre extremamente potente em significado e representação. Ora nos ensina sobre o fim, sobre a morte, de forma sensível e sutil. Ora, gesta a criatura humana com seus impactos individuais e coletivos.


A criatividade feminina, aqui nesse contexto, são palavras redundantes. Quando ela está afrouxada de contenções, emerge como um ato profundamente insurgente. Para além de produzir e desempenhar de forma literal, seu exercício de forma figurativa implica em algo muito perigoso: a capacidade de viver em sintonia com os próprios sentidos, desejos e ritmos.

É aí que o erótico entra como uma experiência íntima de autonomia existencial, não como uma performance sexualizada para utilização do prazer alheio. Como afirma Audre Lorde, “o erótico é uma força vital que nasce da plenitude vivida e que nos conecta com o que há de mais inteiro em nós”. Acessar o erótico profundo é guiar-se por sensações que não seguem protocolos domesticadores. É pensar-se para além da manada, para além do espelho dos outros, para além da moral judaico-cristã meritocrática e condicionada por sofrimentos.


Essa cultura machocentrada, temendo essa força, fez do (corpo feminino) erótico um campo de controle. Reduziu, objetificou, pornografou para consumo interno. Tornou nossa fonte de vida, nosso sangue, nossa conexão ancestral e imanente em algo perigoso e vulgar, para que dissociássemos a interdependência entre corpo-criatividade-espiritualidade.


Acontece que a cultura falhou, falha e vai sempre falhar enquanto tentar fixar aquilo que é constituído de movimento. O erótico (do corpo feminino) é curioso demais da conta. Sua função cria mundos, refaz as redes, regenera em fluxo rizomático. Ele é fértil demais para caber na Ordem com “O” maiúsculo, que sabemos ser artificial e inventada. Ele é subversivo porque escapa. Mesmo querendo, não conseguimos contê-lo.

…E sabemos, historicamente, que a cultura exila/destrói aquilo que duvida, que mobiliza, que carrega em si o impulso prazeroso de viver sentindo a finitude — algo que evoca, aí sim, um direito à própria natureza.


Por isso, pensar-se eroticamente — ou seja, em conexão com o próprio desejo, prazer, ritmo, sonho — é de uma soltura espetacular. É romper com o esperado, se dar algo novo e menos previsível. É pensar a si mesma de dentro, a partir da própria bússola sensível, e não do reflexo projetado por uma cultura que se perpetua às custas do esquecimento de quem somos e do que somos capazes.

Nesse contexto, Lilith e Afrodite emergem como arquétipos vivos dessa força erótica indomável. Lilith, a primeira mulher de Adão, que se recusou a calar e a se deitar por baixo; que preferiu o exílio a ter que acatar a ordem daquele suposto deus. Lilith é uma força erótica que se ejeta pra fora da doutrina, mesmo antes da palavra. Ela está atenta aos gestos. É a vivente que banca não ser aceita, que não suporta fazer carinha meiga e de boa moça para caber. Já Afrodite, muitas vezes ensebada pela imagem da beleza romântica, evoca o poder da excitação criadora — aquela que goza de si, que transforma o mundo ao seu redor com sua presença inteira, com sua sensualidade viva, com sua escolha soberana. Ambas são expressões daquilo que a cultura da violência não consegue se apropriar: a mulher em estado de potência. Não para funcionar, mas para desmecanicizar-se. Para aprofundar-se em capacidade — e não para (des)envolver-se de si mesma.


O erótico, assim compreendido, é uma inteligência corporal que nos devolve para nós mesmas. É um território sagrado onde nenhuma autoridade externa tem jurisdição. Ele nos ensina a reconhecer os sinais do nosso próprio sim e do nosso próprio não. A nos guiar por excitações internas que não podem ser prescritas nem explicadas. E é exatamente por isso que o erótico é revolucionário.

Desde uma perspectiva biológica, somos mamíferas. Procriamos. Mas o que raramente é reconhecido é que esse processo só acontece porque há prazer — e não apenas necessidade. Se gestar, parir, nutrir e soltar para o mundo fosse traumático ou desprazeroso por natureza, a espécie humana já teria deixado de existir, porque aprenderíamos rápido sobre aquilo que nos coloca em risco. O corpo feminino é, por si só, um espaço de criação sensorial. Por isso, a criatividade não pode ficar reduzida ao mental. Por isso precisamos integrar o útero, os ciclos e os estados de fruição que nos constituem.


Quando falamos de parir, jamais poderíamos reduzir o significado disso a um evento, sem a evocação do processo, sem a devida referência a uma travessia profundamente impactante, visceral e mental, que desorganiza, mobiliza e transforma a psique de uma mulher, independentemente de quem ela seja, de onde ela esteja e com quem. Parir não é só ter filhos. Não é “cagar uma melancia”, como ouvimos por aí. Esvaziar o parir é uma traição que, por trauma e violência, aprendemos a perpetuar.

Ao buscarmos a relação com o corpo e a criatividade, podemos ganhar impulso para projetarmos novas realidades, novas percepções. Podemos acessar um lugar visceral de excitação, de transformação, de autoconfiança. Parir é sexual, porque senti-pensar é oferecido ao corpo criador de linguagem. Parimos ideias, projetos, danças, textos, pinturas, livros, visões de novos modos de viver. Tudo isso nasce de dentro. Não do medo da escassez. Nasce da abundância do corpo que sabe de si, que ativa a imaginação, que ousa não aceitar a normose.


A consciência dessa potência é política. Viver em contato com a própria fonte criadora, reconhecer-se como um ser erótico e sensível, é minar as bases da estrutura social hierárquica que se sustenta na repressão dos corpos. O diagnóstico e as prescrições sociais sobre o que sentimos e como nos expressamos têm como objetivo manter essa potência fora de alcance.

Como nos ensina Silvia Federici, durante a formação do capitalismo moderno, o corpo da mulher — especialmente o útero — foi transformado em propriedade do Estado, da Igreja, do marido. O massacre das bruxas foi também o massacre da autonomia feminina, do saber do corpo, da criatividade encarnada. O corpo que sente, que dança, que intui, foi sendo silenciado, punido, separado da terra, da erva, de sua alquimia. Uma mulher que sabe de si é uma ameaça. Uma mulher que sente prazer é incontrolável.


Não é à toa que nos sentimos infantilizadas, desconectadas, desvitalizadas. A estrutura que nos atravessa nos quer distraídas, ansiosas, medicalizadas, estereotipadas. Há uma agenda explícita de desconexão com a origem da vida — da vida real, vivida, sentida. Nos conduzem à performance, à aceleração, à estética da perfeição, enquanto silenciam a sabedoria do corpo que sabe parar, pulsar, parir e morrer em ciclos. Por isso resistimos. Por isso criamos.

Criadoras por natureza — de linguagem, de cultura. Somos (d)a espécie que pergunta, que duvida, que imagina. Nascemos em corpos inteiramente livres e, com o tempo, a socialização nos aliena de nós mesmas. A repressão moral nos afasta da experiência direta com o prazer e nos convence de que pensar é mais legítimo do que sentir. Mas veja: não sentimos os pensamentos. Sentimos o que eles provocam em nós. Por isso é o sentir que nos orienta. Por isso sentir que pode, é poder.


Nossa sensorialidade é uma bússola interna que nos conecta com o mundo. Estamos em relação o tempo todo — com pessoas, objetos, plantas, sons, cheiros, palavras. Tudo nos atravessa. Tudo nos afeta. E, por isso, precisamos validar nossas experiências sensíveis, reconhecer nossos afetos como guias éticos, e não como fraquezas.

A intensidade de informações catastróficas, desumanas e aterrorizantes a que somos expostas diariamente não é neutra: ela molda nosso sistema nervoso, nos colocando em estados de alerta e reatividade constantes. Perdemos o centro, perdemos a escuta, perdemos a imaginação.


E aqui, mais uma vez, a criatividade aparece como resistência. Não como produção de coisas, mas como reinvenção da vida. Como diz Gloria Anzaldúa, somos seres fronteiriças — habitamos muitos mundos e pertencemos a todos e a nenhum ao mesmo tempo. Essa condição, embora dolorosa, é fértil. Criamos a partir das rupturas, das margens, dos entre-lugares. A imaginação é o que nos permite atravessar o deserto simbólico e inaugurar novos caminhos de existência.


Por isso, criar não é um dom, é um direito. Um direito que precisa ser praticado todos os dias, nas pequenas ações cotidianas: ao escolher o silêncio em vez de tagarelar, ao dançar sem motivo, ao dizer “não” com firmeza, ao bordar uma palavra enquanto chora, ao cozinhar com o saber do que alimenta (ou envenena). A criatividade de que falo não é sobre fazer mais, mas sobre colocar alma naquilo que toca e que passa por nós. Não estamos loucas. Estamos revolucionando teorias, cotidianizando revoluções. Nada vai nos impedir de lembrar quem somos e por que estamos aqui.





 
 

Atualizado: 19 de set.


Desde que deixei pra trás minha profissão e carreira, ao me lançar de cabeça na vida imigratória, me dedico a outras formas de viver e pensar. Dos trabalhos institucionais aos atravessamentos cotidianos, passei a refletir profundamente sobre a cultura hegemônica e como ela, através de seus dispositivos familiares-afetivos, escolares e econômicos, estrutura, congela nossos paradigmas e passa a regular a nossa percepção sobre nossa autonomia.


Há um ponto de virada simbólico importante no momento em que conseguimos parar e nos perguntar: “Peraí, isso faz sentido para a minha experiência de vida? É dessa forma que quero viver? Se eu morrer amanhã, é assim que gostaria de ter vivido a minha historia? Minhas escolhas estão baseadas na minha vontade consciente ou em medos sem nome?  Ouso olhar nos olhos do medo e perguntar: o que o senhor quer de mim? -  na tentativa de nomear e confrontar consigo mesma (?)"


As respostas que emergem serão pessoais, singulares. Porém, invariavelmente, nos levam a questionar o que está posto até ali, e nos empurram para direções e atitudes que irão friccionar a suposta ordem natural das coisas. E é preciso coragem — e alguma fé — uma vez que, ao discordarmos das forças que sustentam o macrossistema econômico e social vigente, nos deparamos com as muitas camadas de censuras e interdições que se impõem sobre um devir-mulher mais autêntico.


Tenho interesse por temas como dominação, interditos subjetivos e dispositivos de controle — não apenas como objetos de estudo, mas refletindo sobre a realidade que me atravessa pessoalmente há muito tempo.

Como mulher branca, classe média, brasileira, joguei o jogo com o "livro das regras" debaixo do braço. Estudei durante anos, trabalhei, estudei ainda mais, e cumpri todos os passos que, supostamente, me garantiriam uma vida de trabalho minimamente estável, reconhecida e digna. Até que percebi que, daquele lugar de onde eu enxergava minha vida, o caminho adiante era de esgotamento e de uma existência comprimida e normatizada.


Difícil afirmar isso sem me sentir meio ingênua e desavisada — mas tenho que ser honesta. Sempre quis parir e criar os meus filhos. Não achava interessante o modelo das crianças em creches, com empregadas, cheias de horários e pressas, e veja, não é uma crítica alienada, porque observo a saga que as mulheres vivem para criar seus filhos sem condições e suporte. No entanto, até ali eu pensava, se não for uma pessoa com as minhas características, que estudei, que pude buscar algum conhecimento sobre a infância, experiência de vínculo, opressão estrutural de gênero (com a invisibilidade do trabalho doméstico e de cuidado), que tenho um parceiro comigo, a bancar e sustentar escolhas incomuns na minha geração, quem mais seria (?). 


Quando começamos a reunir forças para morar fora do país, essa reflexão estava presente: como criar espaço para viver a maternidade de forma inteira, sem a pressão do mercado, da produtividade e da aceleração que eu já conhecia (e detestava)? 

Saímos do Brasil com o desejo genuíno de construir outra realidade: uma vida mais expandida, com mais tempo para o bem viver, viagens para aprender sobre outras culturas, outras línguas — abrir outros horizontes. Quando nosso primeiro filho nasceu, a pressão para retornar ao velho caminho reapareceu com força. Foi ali que vivi uma crise de identidade profunda. Não queríamos deixá-lo numa creche o dia todo para seguir vidas normativas que já sabíamos onde iriam dar. Então, decidi abrir mão de continuar naquela trajetória que já tinha me mostrado seus limites em termos de prazer, estímulo e sentido.

Foi nesse ponto que senti com força o peso simbólico da cultura operando ao meu redor — especialmente na forma como a minha escolha de priorizar meu tempo de mulher-mãe foi interpretada. Em vez do reconhecimento como um gesto de coragem, autonomia, foi lido como um gesto de alguém que se rebaixou a vida de dona de casa, que desistiu, que não teve força para continuar, que teve preguiça, que vivia fora da realidade do mundo. Isso, mesmo já tendo tido uma vida supostamente adulta de pagar as próprias contas, com trabalhos de algum valor social, eu imaginava, como docente, enfermeira obstétrica, pesquisadora.

Mais do que isso: o simples fato de eu ter me tornado economicamente dependente do meu companheiro — mesmo dentro de um projeto comum, discutido, desejado e encampado por nós dois — passou a ter mais peso na percepção social do que todo o trabalho imenso, extremamente repetitivo, cansativo, cotidiano, cheio de imprevisibilidades, que é criar um filho nessa sociedade sem redes afetivas de apoio não pago. Como se depender financeiramente do parceiro anulasse insidiosamente meu intelecto, minha força de trabalho e o pleno agenciamento da minha vida adulta.


O trabalho de cuidado, essencial e estruturante, continua sendo desvalorizado porque escapa à lógica imediata de mercado, inclusive pelas próprias mulheres, que majoritariamente o pratica. Mas é justamente ele que sustenta, silenciosamente, o funcionamento da vida social, como já sabemos. Ao cuidar, contribuímos - de forma concreta - para a saúde integral dos nossos filhos. Isso tem impacto direto nos sistemas públicos de saúde, educação e segurança. Crianças cuidadas e brincantes tendem a adoecer menos, a se desenvolver com mais equilíbrio e a demandar menos do estado ao longo da vida. Ainda assim, a cultura hegemônica insiste em valorizar apenas o que é contabilizado como capital. O que está em jogo não é apenas poder, mas autoridade simbólica, mensagem clara de reconhecimento de valor social. E foi essa distorção que me atravessou com força, me fazendo questionar: desde quando sustentar a vida  — com todas as implicações cotidianas vividas por todas nós, do tempo despendido na organização, planejamento, execução — é menos importante do que sustentar uma conta bancária

Enquanto éramos somente nós dois no mundo, vivíamos a realidade de dois adultos autônomos juntos, cujo foco era cada um na sua vida, com a libido no trabalho e as partilhas no tempo livre. Com filhos, saímos do centro. 

Claro que se prover segue sendo importante e indispensável, inegavelmente. Mas temos que ir além pra refletir. Somos provocados a um movimento de amadurecimento intenso, já que nossas necessidades passam a vir depois da febre do filho, do sono do filho, das necessidades do filho


Somos nós que negamos essa realidade, ou é uma sociedade que opera numa lógica autoritária nos removendo do poder concreto e simbólico contido nessa experiência, que é numericamente feminina e cotidiana?  


Porque continuamos a negar isso as custas de uma subordinação simbólico-prática sem nos afirmarmos desde o nosso lugar de corpo não máquina


Porque aceitamos sem reclamar a separação do mundo doméstico e do trabalho, se para as mulheres os dois partem de um mesmo ser que só acumula responsabilidades?  

Porque aceitamos uma hierarquização que privilegia o mecanicismo e uma racionalidade linear?

O que acontece com a nossa percepção e a nossa capacidade de nos colocarmos nas relações afetivas, de forma a bancar a nossa inteireza sensível - não silenciando o que se sentimos e queremos que nos aconteça quando criamos nossos filhos? 

Porque a cultura nos inferioriza quando colocamos essas condições fundamentais primeiro? Se meu corpo, minhas horas de existência estarão ao dispor de uma experiência que é social, em teoria fomentada, porque a cultura vai exigir e esperar de mim (e de nós) que eu cuide, zele, me dedique sem demandar nada em retorno? 

O que leva as mulheres a repetirem narrativas desmembradas da experiência sensível que é o processo da criação dos filhos em prol de confetes patriarcais, cujos aplausos parecem condicionados a termos que abrir mão do que se passa em nossos corpos e ciclos para termos a mesma valorização social? 

Porque nos tardamos tanto a integrar a nossa potência sexual e reprodutiva ao nosso intelecto dentro das nossas realidades em grandes bandos, senão, pelo interdito que nos é colocado através das regras do jogo patriarcal que vai me dizer que só serei boa o suficiente quando fizer isso e aquilo, mas que todas nós sabemos que nunca seremos suficientes numa cultura estruturalmente misógina e racista, porque não vamos matar gentes deliberadamente por território, porque a violência não nos constitui, porque sangramos, engravidamos, parimos, amamentamos. Nossa constituição é de conexão com vida, com a inclusão e nunca com a matança como justificável ou afirmativa. A alienação de nossa condição tem nos levado a consequências macrossistêmicas terríveis.


A cultura nasce de nós. 


Porque nos tardamos em romper com a opressão e exploração estrutural a partir de nós mesmas no antro familiar, e também em rir juntas do quão fomos inocentes um dia?  

Somos nós que vivemos e encarnamos no corpo as transições e amadurecimentos sociais. Qualquer mulher sabe que a criação das crianças demanda por um componente altruísta imenso, que o prazer da experiência pode ser facilmente esvaziado por conta das dificuldades cotidianas. Portanto, quero deixar pra lá essencialismos que beiram a bestialização das mulheres. 


Há ainda outro aspecto importante não descolado de culpas e julgamentos: a recusa da lógica da tripla jornada. No meu caso — como de muitas outras mulheres — essa escolha não veio da passividade ou da fuga, mas de uma reflexão madura sobre o tipo de vida que desejo sustentar. A emancipação que busco transcende o capital. Imigrar, pra nós, que tínhamos uma vida profissional, nunca foi sobre sobrevivência, e sim sobre ter o tempo da vida de volta. Trabalhar sob pressão e estresse constante num sistema exploratório cada vez mais vulnerabilizador, sem direitos sociais, cuidar de filhos, gerir a vida familiar constantemente, tentando manter mal e porcamente algum resquício de saúde mental e um corpo in shape para gringo ver, como ideal de independência feminina? Que grande armadilha. Como disse Silvia Frederici numa entrevista: “Não, não estamos emancipadas, estamos cansadas e em crise”. 


Não aceitar esse modelo não significa se apagar ou se acomodar. Sou uma feminista e jamais diria para uma mulher ter filhos, quanto mais a depender de um parceiro machista ordinário, coisa bem comum, infelizmente. É, ao contrário, reivindicar uma postura soberana, deliberada, sobre o próprio tempo, o próprio corpo e o próprio desejo. Provocar o sistema patriarcal de dentro do lugar de onde ele nasce, onde a mulher-mãe se afirma não subjugada ao poder que o dinheiro evoca, é afirmar que a vida criativa, a saúde emocional e a liberdade de presença no cotidiano têm valor central. Que podemos nos postar no mundo a partir de uma escolha consciente e não submissa. E que isso não nos faz menos radicais em nossos pensamentos de justiça social, menos feministas, menos capazes.


Muitas de nós estamos tentando romper com essa engrenagem que só nos suga. E nesse rompimento há grandes desconfortos, mas também há espaço para recriar o mundo a partir de outras lógicas afetivas e sustentáveis. 


Se a busca por independência através do acesso ao capital pela via do trabalho, por si só, não é necessariamente emancipatória — uma vez que, para acessá-lo seguimos subordinadas às instituições patriarcais, financeiras e produtivistas — então, o que pode nos libertar, ou ao menos nos mover para além da repetição da dominação/submissão a hierarquias que nunca irão nos beneficiar a longo prazo?

Para mim, a arte tem sido uma fonte de poder. A arte demanda pela nossa soltura. Ela nos treina para a liberdade. Ela implica risco, presença, corpo, imaginação. Ela opera por deslocamento, subversão, transgressão. Ela desorganiza as normas que nos colonizam por dentro. A arte — seja ela qual for em exercício, nos devolve a autonomia do gesto, do tempo, do desejo. Como dizem na minha terra, é pequeno, mas é grande. 


Enquanto o capital é condicionado a sistemas artificiais que nos classificam, controlam, normatizam, hierarquizam, experimentar-se na arte pode ser o campo onde um corpo emancipado experimenta ser. Um corpo que não está a serviço, que não se explica, que não se justifica, que sente, que move, que cria mundos e reencantamento através do exercício da percepção. E isso é profundamente revolucionário. Da subjetividade encarnada como gesto político, a vida cotidiana como espaço simbólico de fomento e insumo criativo. 


Criar filhos transcende a gaze patriarcal quando uma mulher habita o tempo de criação para se recriar subjetivamente ao seu próprio modo e prazer. Essa é uma virada importante. Se dar permissão, se ofertar, não conceder aquilo que é nosso por direito. Assim criamos novos mundos, criamos fugas, desvios. 


Habitar os desconfortos há de ser a morada da nossa autonomia. Há de nos servir para criarmos formas mais expandidas de encontrar sentido, satisfação, comunhão, sem obedecer a ordem de precisarmos estar submetidas e ter que sofrer para merecer fruir. 






 
 
  • jurigol
  • 13 de set.

Atualizado: 29 de set.

(Escute junto com a leitura) Antes de me chamar de artista, fui enfermeira obstétrica. Naquele ofício, encontrei o sagrado no toque, na capacidade de estar junto a alguém que sofre das coisas do carnal, na força do corpo que gera vida, na potência silenciosa das mulheres que atravessam o parto. Amava profundamente meu trabalho, mas ele era uma dança constante de resistência às forças hegemônicas que querem controlar, domar e definir o percurso criativo de uma mulher através da objetificação do corpo e das interferências desnecessárias no nascer. Eu me exigia para prestar um bom cuidado, mas sentia o peso insidioso da opressão institucional.

 

Então, um dia, decidi me afastar da prática clínica, acadêmica e científica para me lançar em peregrinação carregando a seguinte pergunta “o que mais eu amo fazer, para além de ser enfermeira, pesquisadora, professora?”— um tipo de expedição que exigiria uma investigação mais profunda, na arte, mobilização e escuta de uma camada mais sensível, menos óbvia, mais escondida do meu desejo. Entrei num território incerto, onde o risco de buscar sentido era maior, a solidão, mais densa, e os lutos, inevitáveis.

 

Até hoje me pergunto de onde tirei força pra dar um cavalinho de pau tão decisivo…? Se mal sabia o quão difícil seria o caminho. Lembro naquela época que tinha uma impulsividade e uma excitação familiar, como uma memória sensorial de pular na parte mais funda da piscina de um trampolim quando criança pela primeira vez. A gente sabe nadar, mas saltar lá de cima, cair no fundo daquela água, ter que subir sozinha à superfície e nadar até a borda por conta própria é uma aventura e tanto. Foi um impulso de um lugar mais profundo — algo mais ancestral que sussurrava que era hora de seguir o fluxo da vida descarrilhando o trem mesmo, rasgando o mapa, seguindo a minha intuição, meus próprios “huevos”.

 

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Lembro quando li essa linha de Clarice Lispector, como num encontro de muita sororidade, eu sabia de onde ela tinha escrito aquilo. Uma força, algo inominável mas que continha a vontade de experienciar, descobrir, desvendar. Demorei pra enfrentar as minhas próprias palavras, inventar meu próprio texto, usar as minhas próprias metáforas para dizer o que penso de uma forma interessante, já que me coloquei num não lugar para dizer quem sou. A maternidade certamente ancorou esse giro, porém nem por um segundo me acomodou. 

 

Tinha uma resistência enorme em (me)escrever. Cresci sem a confiança no gesto da escrita. Quando criança tive meu ‘diário’ roubado e lido sem a minha permissão. Acontecimento que me invadiu, me envergonhou. Entendi que era melhor guardar em mim. Foi assim com a minha dança também. Valorizo muito a minha privacidade, de existir num tempo-espaço só meu, que não obedece as lógicas externas. Quando a escrita voltou como gesto cotidiano, vivi novamente uma angústia muito grande. Tinha a impressão de que ao começar transcrever meus fluxos de pensamentos no papel eu não ia mais conseguir parar. Seria um movimento desenfreado onde eu poderia denunciar e vociferar todas as barbaridades, violências, silenciamentos, covardias, injustiças, abandonos, humilhações que vivi e testemunhei, e onde eu poderia me redimir comigo mesma, narrar em palavras (porque já pintava e já extravasava por lá minha necessidade auto-expressiva) o meu protagonismo e meu pensamento autônomo. 

 

“Não se nasce mulher: torna-se mulher.” Adoro essa linha, porque me lembra de perguntar: O que é ser mulher? O que me define como mulher? Ser chamada de fêmea é a mesma coisa? É ter um corpo com útero? É usar saia, salto alto, brincos coloridos e batom? Simone de Beauvoir teve muito a dizer sobre essa questão, apontou de forma até então não propagada, que a ideia de ‘mulher’ tem sido fabricada historicamente para ser o ‘outro’ da cultura binária, sugerindo que a compreensão clara a respeito disso, abre espaços para nos desafiarmos nos quesitos autonomia, independência, emancipação.  

Essa frase dela me ressoa como um convite — para (des)construir, para tangenciar a ideia de identidades impostas, para afirmar a própria existência com lucidez. É nesse espírito que entendo o que tenho vivido até aqui: uma marcha de desapego e reinvenção continua. Graças a companhia de mulheres que se afirmaram a partir de suas vozes e saberes não me sinto totalmente sozinha. Cada uma, destrinchando seus próprios interditos, encontrou uma maneira de elaborar a sua história singular.

 

Penso em Elza Soares, com aquela voz rasgada e força indomável, ecoando a potência de resistir e gritar: “não quero ser a mulher da casa, quero ser a mulher do mundo”- me ensinando sobre a relação da criação com a luta por soberania e um ato de amor-próprio. Maya Angelou, corajosa e doce, diz que persistir é uma forma de vencer: “Podemos encontrar muitas derrotas, mas não devemos ser derrotados.” bell hooks, que amplia essa visão e conecta a resistência ao amor, amor por si mesma, amor pelos que querem a libertação individual/coletiva e inventam novos caminhos para encontrar comunhão. Lélia Gonzalez, no estudando a ancestralidade, a política do corpo, que me evoca a ideia da criação como gesto ativo de revolução cultural.

 

Em resumo, entrar em devir-mulher não é um caminho isento de intensos desconfortos e exílios. O mundo quer que nos encaixemos, que nos remediemos, que nos anestesiemos com falsas soluções. A pressão é direta e indireta de todos os lados para que sejamos padronizáveis, previsíveis, transparentes e comparáveis. Tudo isso entretem, distrai e afasta qualquer pessoa do seu pulso criativo autoral e autêntico… 

Aí vem Clarissa Pinkola Estés a me falar do fogo selvagem, um aspecto da psique humana, que, mesmo soterrado por escombros normativos, nunca se apaga. Fica lá, como uma pequena brasa escondida. Precisa soprá-la com força para levantar a labareda e ter de volta o calor interno que aquece a casa toda. 

Não posso provar, mas sei que me habita um ritmo ancestral, uma força antiga que me dá um sustento profundo e insiste para eu ir devagar. A faceta quente do desejo de comunhão, que recusa a domesticação, que se autoriza a excentricidade, que se permite ressignificar noções de dependência/independência, que usa os próprios ‘ovários’ para seguir criando mesmo invadida de dúvidas

 

Eu sei que seguir esse fogo é adentrar um submundo aquático e profundo, onde não se enxerga com os olhos, onde é preciso de artefatos mais imaginativos e oníricos para encontrar respostas e novos caminhos de subida. É participar da vida com a sensação de ser maravilhosamente insignificante. Olhar pra arte, seus símbolos e representações como o grande conector de indivíduos, subjetividades e coletivos. Nesses momentos de vestir a pele de foca e imergir, eu faço uma honraria as essas companheiras invisíveis. Sentada a beira da fogueira na noite escura do exílio criativo eu agradeço a Clarice, a Simone, a Elza, a Maya, a bell, a Lélia e a Clarissa. Suas palavras, suas formas únicas, autênticas para falar das coisas mundanas, comuns, suas vidas como referência me acompanham e me desafiam a ser fiel ao meu fogo, a sabedoria do meu corpo, do meus ciclos, e confiar no meu pulso.

 

E é nesse caminho, entre movimentos e descansos, que eu me localizo. Numa espécie de ressaca dançante, experienciando o processo de aprender sobre meu próprio ritmo, des-cobrir outras formas e cores, suavizar a relação com o tempo — como parte de uma ritualística de autocuidado. Todos esses aspectos que dizem respeito à existência feminina encarnada em práticas de sabedoria. Tudo isso que todas nós merecemos, mas que não nos é dado de forma leve ou passiva — muito menos por direito. Tudo isso que, se não for eu a me conceder... quem é que me dará, né?



 
 
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