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Parto do presente como quem parte de uma ferida aberta. Do vazio que não é ausência, mas excesso de ruído. Parto do fim — esse que não avisa, que não explode, mas se arrasta. Invisível, diário, miúdo. Parto da estase que chamam de vida normal, mas que é só um torpor bem produzido.


Vivemos no delírio de que o fim do mundo é espetáculo. Tela gigante, som estourado, colapso com efeitos especiais. A ficção do apocalipse alheio, exportado de Hollywood, onde tudo acaba longe: Manhattan em chamas, criaturas metálicas vagando entre ruínas. Corpos sem alma, máquinas com função.


Só que o fim não chega assim. O fim já está. E é sutil. É quando não se sonha mais. Quando se rola o feed em silêncio. Quando o toque perde sentido. Quando a palavra não alcança. Quando tudo cansa.


Esses futuros-fim do mundo não são invenção — são sintomas. Armadilhas do olhar que nos sequestram por dentro. Nos convencem de que tudo já está perdido — então pra quê desejar? Pra quê imaginar?


E essa é a violência mais funda: nos ensinarem a não querer. Nos treinarem para o tédio, para a obediência, para a repetição. Nos programarem para a anestesia. Como se viver fosse aguentar.


Mas há quem recuse. Quem trincou por dentro, mas ainda sente. Quem desconfia que há outro jeito de existir — um jeito menos produto e mais presença. Quem sabe que o corpo não é ferramenta, mas oráculo. Não é máquina, mas portal.


É preciso reencantar.

Mergulhar em si como quem desce um rio escuro, onde cada curva é risco e revelação.

Onde o medo é bússola e o fundo é fértil.

Onde o escuro é útero — e não ausência.


O labirinto é o caminho. Não há mapa.

A criação verdadeira não vende ingresso.

Ela exige perda, entrega, falha.


Ela nasce do rasgo, da febre, do espanto.

Ela não se streama.


O mundo só pode nascer de novo através dos corpos que ainda sentem.


Quem sente, move.

Quem move, transforma.

E quem transforma, desobedece. Ainda há tempo para desobedecer!


É tempo de desacelerar o fim —

desligar os roteiros prontos,

queimar os manuais de esperança plastificada,

e reescrever o real desde o delírio lúcido dos afetos.


Se estamos no fim da imaginação por um lado, por outro

Estamos no começo do gesto que ousa imaginar apesar de tudo.

Do desejo que resiste, mesmo exausto.

Do corpo que ainda pulsa — mesmo ferido.


Criar a partir desse agora, é insubmissão em ato.

É lembrar que o mundo não termina na ausência de futuro —

mas na ausência de sensibilidade.


Se é para acabar, que seja criando.

Mas não criando qualquer coisa, de forma mecânica e forçada.

Criando mundos onde ainda se pode habitar com alma, espontaneidade, alegria.

Onde ter calma pode ser rito.

Onde a escuta prevalece sobre a necessidade de falar


E onde dependamos de muitas outras formas de linguagem, para que possamos respirar juntos o mesmo ar.



 
 
  • jurigol
  • 3 de jul.

orfandade da alma


A orfandade da alma não é literal — trata-se de uma sensação profunda de desenraizamento, de estar desligado de um pertencimento essencial. É o chamado vazio existencial (duvido sempre do uso da palavra vazio para descrever algo tão recheado de sensação), a falta de referências emocionais, espirituais ou simbólicas que deem sentido à existência. Essa dor é silenciosa e constante, uma ferida qlatejante. Alma sem lar, sem linguagem, sem espelho.


Diante dessa dor, o gesto artístico aparece como refúgio e reinvenção. O encontro com a pintura não é apenas técnico ou estético, mas vital. A tela se torna o lugar onde essa alma órfã pode, enfim, criar raízes simbólicas — inventar um território interno. Pintar, nesse contexto, é um ato de sobrevivência. Não se trata de buscar beleza, mas verdade subjetiva.


Ao permitir que o indizível tome forma, cor e gesto, a pintura opera uma revolução íntima. É a desconstrução de máscaras e identidades impostas, e a reconstrução de um "eu" mais autêntico. Uma revolução subjetiva, porque muda a forma como o sujeito se vê, se sente, se narra. Expressar-se é, nesse sentido, um ato de resistência contra o apagamento de si, subversão silenciosa


da pintura-gesto que gesta micro-revoluções


Há dores que não gritam — habitam. Dores que não se curam com o tempo, pois não pertencem ao tempo historico. Silenciosa e dilacerante é a orfandade da alma.

Não a orfandade literal, mas aquela que nasce da sensação de não pertencimento, de não ter casa dentro de si, de carregar o corpo como um abrigo desabitado. Um exílio interno onde faltam nomes, espelhos e afetos.


Durante muito tempo, caminhei nesse território árido. Sentia-me estrangeira no próprio corpo, como se as palavras nunca fossem suficientes para nomear o que doía. Era como se houvesse uma língua secreta que eu não conhecia — uma linguagem que pudesse dar forma ao caos, cor ao vazio, gesto àquilo que, até então, era apenas sombra.


 Foi nesse abismo que encontrei a pintura.

Ou, talvez, tenha sido ela que me encontrou.


 A tela se ofereceu como espelho possível. As cores, como vocabulário intuitivo. O gesto, como o primeiro balbucio de uma voz que até então jazia calada. Pintar não era um exercício de técnica, mas um ato de emergência existencial. Era como respirar depois de muito tempo submerso.


A cada tela, algo de mim se reorganizava. A dor deixava de ser fantasma e ganhava contorno. A alma, antes órfã, começava a criar raízes simbólicas. E foi assim que a arte deixou de ser expressão e passou a ser construção: uma revolução subjetiva.


Este projeto nasce dessa travessia. É uma coleção de fragmentos, uma tentativa de tradução de uma vivência que não coube em palavras. São pinturas que não ilustram, mas revelam. Que não explicam, mas expõem.


Mais do que mostrar obras, quero abrir processos. Convidar à escuta sensível. Propor uma reflexão sobre como a arte pode ser abrigo, linguagem e território para almas em exílio.


———


Sou um corpo em busca de linguagem.

Minha alma, por muito tempo, foi um lugar sem endereço — órfã de pertencimento, de espelho, de escuta. Cresci tentando caber em silêncios que me sufocavam. Por dentro, tudo era excesso, mas por fora... contenção.


 A pintura apareceu como um acidente necessário, um gesto de sobrevivência. Não pinto para mostrar o que vejo — pinto para descobrir quem sou. A tela é meu abrigo, meu campo de batalha, meu altar íntimo. Memórias reencontradas, traços, nervos expostos, uma história não contada por palavras.


Meu trabalho nasce do anseio, de um contorcimento e estranhamento insistente, Ele se transforma em gesto de criação, em autoescuta e, quem sabe, em espelho para quem também procura casa dentro de si.


A pintura é uma travessia: do exílio interno à possibilidade de habitar-se. Pintar é meu modo de voltar para mim, tomar contato com um ‘eu’ maior, algo mais sabia que está em mim antes da minha percepção consciente.


—————


Costuma-se pensar o vazio como silêncio, como ausência.

Mas o vazio existencial é, na verdade, um lugar cheio demais.

Recheado de desconfortos antigos, memórias que não cessam, ideias que giram sem direção, e impulsos que não encontraram gesto.


É um território interno onde os gritos são mudos e os desejos, interditados. Onde cada pensamento é um labirinto e cada lembrança, uma porta entreaberta.


O corpo sente, mas não age.

A alma busca, mas não encontra.

Há uma tensão entre o que pulsa e o que paralisa.

Uma espécie de ruído constante — como se a existência fosse feita de mil vozes sussurrando ao mesmo tempo.


Na pintura, tento abrir espaço nesse transbordamento.

nomear em cor o que me atravessa sem linguagem.

Cada forma procura traduzir o indizível.


Pintar, para mim, não é preencher o vazio.

É habitar esse lugar caótico com presença.

É aceitar que, às vezes, o vazio é apenas um excesso que ainda não se organizou.



 
 
  • jurigol
  • 3 de jul.

Acordo com o corpo. O pensamento ainda está em suspenso, meio embriagado pelos sonhos fragmentados da noite — imagens absurdas, como pedaços de pintura abstrata, sem contorno definido. A luz entra pela fresta da janela, dourando o chão, tingindo os móveis com uma cor suave. É nesse intervalo que sinto: algo em mim quer ganhar forma.


O desejo não é de falar, nem de escrever. É gesto. É meu corpo pedindo espaço para existir na tela. Movimento contido, mas pulsante, que só se resolve quando vira cor. E mesmo que ainda não haja pincel na mão, o ato de preparar o café já é um tipo de ensaio.

Percebo o corpo atento. Não como uma presença decorativa no mundo, mas como aquele lugar onde tudo começa, onde a verdade se instala antes mesmo de virar palavra.


A água esquenta. O moedor de café soa como um pequeno motor interno. E eu, entre uma tarefa e outra, penso nas nuances que o fogão não tem. Ele promete precisão com seus números, mas só entende extremos — quente demais ou morno demais. É quase uma mentira: simula gradações, mas só entrega o binário. Talvez por isso a pintura me salve. Ela não mente sobre a transição entre tons. É feita do entre. Daquilo que não se define logo.


O silêncio da casa ainda não foi quebrado. Eles dormem. E eu existo inteira nesse momento suspenso.

Há uma beleza estranha nos gestos repetidos da manhã. Talvez não beleza, mas densidade. Um acúmulo de algo que não se vê, mas se sente. Como se cada ação cotidiana carregasse sua história particular — não uma história grande, mas densa, íntima, cheia de vida invisível.


Penso que é aí que a pintura começa.


Nem sempre se pinta com intenção clara. Às vezes é preciso apenas deixar o corpo dizer. Deixar que ele conte, sem pressa, tudo aquilo que ficou atravessado — como faziam aquelas mulheres que sabiam que o corpo também fala. Não com palavras, mas com traços, cores, gestos. Com camadas.

Pintar, então, se torna uma forma de lembrar — sem precisar narrar.

De sustentar o paradoxo de viver intensamente o que não se pode explicar.


Eles começam a acordar. O som da casa muda. A presença dos corpos preenche os espaços antes vazios. E o instante se desfaz. Mas algo ficou.

Algo que se acumula no peito como pigmento adormecido, esperando o gesto certo.


Mais tarde, talvez, os pincéis toquem a tela. Talvez não. Mas sei que estive ali, inteira, mesmo por um breve momento. E isso por hoje deve bastar.



 
 
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