- jurigol
- 26 de set.
O útero, cálice, formato de cabeça de boi (e chifres de trompas), esse órgão poderoso do corpo de fêmea mamífera, reduzido à sua função biológica, carrega em si uma força simbólica espetacular. Vem comigo e vamos brincar de metáforas. Ao longo de uma vida de amadurecimento, todo mês, impulsos, ideias e desejos muito estimulantes nos afloram, percorrendo uma trajetória de sorte e disposição à fecundação. Camadas internas de sabedoria, acolhimento e receptividade são formadas na função de sustentar, dar substrato para que algo eleito germine e se desenvolva. Essas ideias carregam em si a potência de sementes. Seja pela fecundação literal ou figurada, o processo é sempre extremamente potente em significado e representação. Ora nos ensina sobre o fim, sobre a morte, de forma sensível e sutil. Ora, gesta a criatura humana com seus impactos individuais e coletivos.
A criatividade feminina, aqui nesse contexto, são palavras redundantes. Quando ela está afrouxada de contenções, emerge como um ato profundamente insurgente. Para além de produzir e desempenhar de forma literal, seu exercício de forma figurativa implica em algo muito perigoso: a capacidade de viver em sintonia com os próprios sentidos, desejos e ritmos.
É aí que o erótico entra como uma experiência íntima de autonomia existencial, não como uma performance sexualizada para utilização do prazer alheio. Como afirma Audre Lorde, “o erótico é uma força vital que nasce da plenitude vivida e que nos conecta com o que há de mais inteiro em nós”. Acessar o erótico profundo é guiar-se por sensações que não seguem protocolos domesticadores. É pensar-se para além da manada, para além do espelho dos outros, para além da moral judaico-cristã meritocrática e condicionada por sofrimentos.
Essa cultura machocentrada, temendo essa força, fez do (corpo feminino) erótico um campo de controle. Reduziu, objetificou, pornografou para consumo interno. Tornou nossa fonte de vida, nosso sangue, nossa conexão ancestral e imanente em algo perigoso e vulgar, para que dissociássemos a interdependência entre corpo-criatividade-espiritualidade.
Acontece que a cultura falhou, falha e vai sempre falhar enquanto tentar fixar aquilo que é constituído de movimento. O erótico (do corpo feminino) é curioso demais da conta. Sua função cria mundos, refaz as redes, regenera em fluxo rizomático. Ele é fértil demais para caber na Ordem com “O” maiúsculo, que sabemos ser artificial e inventada. Ele é subversivo porque escapa. Mesmo querendo, não conseguimos contê-lo.
…E sabemos, historicamente, que a cultura exila/destrói aquilo que duvida, que mobiliza, que carrega em si o impulso prazeroso de viver sentindo a finitude — algo que evoca, aí sim, um direito à própria natureza.
Por isso, pensar-se eroticamente — ou seja, em conexão com o próprio desejo, prazer, ritmo, sonho — é de uma soltura espetacular. É romper com o esperado, se dar algo novo e menos previsível. É pensar a si mesma de dentro, a partir da própria bússola sensível, e não do reflexo projetado por uma cultura que se perpetua às custas do esquecimento de quem somos e do que somos capazes.
Nesse contexto, Lilith e Afrodite emergem como arquétipos vivos dessa força erótica indomável. Lilith, a primeira mulher de Adão, que se recusou a calar e a se deitar por baixo; que preferiu o exílio a ter que acatar a ordem daquele suposto deus. Lilith é uma força erótica que se ejeta pra fora da doutrina, mesmo antes da palavra. Ela está atenta aos gestos. É a vivente que banca não ser aceita, que não suporta fazer carinha meiga e de boa moça para caber. Já Afrodite, muitas vezes ensebada pela imagem da beleza romântica, evoca o poder da excitação criadora — aquela que goza de si, que transforma o mundo ao seu redor com sua presença inteira, com sua sensualidade viva, com sua escolha soberana. Ambas são expressões daquilo que a cultura da violência não consegue se apropriar: a mulher em estado de potência. Não para funcionar, mas para desmecanicizar-se. Para aprofundar-se em capacidade — e não para (des)envolver-se de si mesma.
O erótico, assim compreendido, é uma inteligência corporal que nos devolve para nós mesmas. É um território sagrado onde nenhuma autoridade externa tem jurisdição. Ele nos ensina a reconhecer os sinais do nosso próprio sim e do nosso próprio não. A nos guiar por excitações internas que não podem ser prescritas nem explicadas. E é exatamente por isso que o erótico é revolucionário.
Desde uma perspectiva biológica, somos mamíferas. Procriamos. Mas o que raramente é reconhecido é que esse processo só acontece porque há prazer — e não apenas necessidade. Se gestar, parir, nutrir e soltar para o mundo fosse traumático ou desprazeroso por natureza, a espécie humana já teria deixado de existir, porque aprenderíamos rápido sobre aquilo que nos coloca em risco. O corpo feminino é, por si só, um espaço de criação sensorial. Por isso, a criatividade não pode ficar reduzida ao mental. Por isso precisamos integrar o útero, os ciclos e os estados de fruição que nos constituem.
Quando falamos de parir, jamais poderíamos reduzir o significado disso a um evento, sem a evocação do processo, sem a devida referência a uma travessia profundamente impactante, visceral e mental, que desorganiza, mobiliza e transforma a psique de uma mulher, independentemente de quem ela seja, de onde ela esteja e com quem. Parir não é só ter filhos. Não é “cagar uma melancia”, como ouvimos por aí. Esvaziar o parir é uma traição que, por trauma e violência, aprendemos a perpetuar.
Ao buscarmos a relação com o corpo e a criatividade, podemos ganhar impulso para projetarmos novas realidades, novas percepções. Podemos acessar um lugar visceral de excitação, de transformação, de autoconfiança. Parir é sexual, porque senti-pensar é oferecido ao corpo criador de linguagem. Parimos ideias, projetos, danças, textos, pinturas, livros, visões de novos modos de viver. Tudo isso nasce de dentro. Não do medo da escassez. Nasce da abundância do corpo que sabe de si, que ativa a imaginação, que ousa não aceitar a normose.
A consciência dessa potência é política. Viver em contato com a própria fonte criadora, reconhecer-se como um ser erótico e sensível, é minar as bases da estrutura social hierárquica que se sustenta na repressão dos corpos. O diagnóstico e as prescrições sociais sobre o que sentimos e como nos expressamos têm como objetivo manter essa potência fora de alcance.
Como nos ensina Silvia Federici, durante a formação do capitalismo moderno, o corpo da mulher — especialmente o útero — foi transformado em propriedade do Estado, da Igreja, do marido. O massacre das bruxas foi também o massacre da autonomia feminina, do saber do corpo, da criatividade encarnada. O corpo que sente, que dança, que intui, foi sendo silenciado, punido, separado da terra, da erva, de sua alquimia. Uma mulher que sabe de si é uma ameaça. Uma mulher que sente prazer é incontrolável.
Não é à toa que nos sentimos infantilizadas, desconectadas, desvitalizadas. A estrutura que nos atravessa nos quer distraídas, ansiosas, medicalizadas, estereotipadas. Há uma agenda explícita de desconexão com a origem da vida — da vida real, vivida, sentida. Nos conduzem à performance, à aceleração, à estética da perfeição, enquanto silenciam a sabedoria do corpo que sabe parar, pulsar, parir e morrer em ciclos. Por isso resistimos. Por isso criamos.
Criadoras por natureza — de linguagem, de cultura. Somos (d)a espécie que pergunta, que duvida, que imagina. Nascemos em corpos inteiramente livres e, com o tempo, a socialização nos aliena de nós mesmas. A repressão moral nos afasta da experiência direta com o prazer e nos convence de que pensar é mais legítimo do que sentir. Mas veja: não sentimos os pensamentos. Sentimos o que eles provocam em nós. Por isso é o sentir que nos orienta. Por isso sentir que pode, é poder.
Nossa sensorialidade é uma bússola interna que nos conecta com o mundo. Estamos em relação o tempo todo — com pessoas, objetos, plantas, sons, cheiros, palavras. Tudo nos atravessa. Tudo nos afeta. E, por isso, precisamos validar nossas experiências sensíveis, reconhecer nossos afetos como guias éticos, e não como fraquezas.
A intensidade de informações catastróficas, desumanas e aterrorizantes a que somos expostas diariamente não é neutra: ela molda nosso sistema nervoso, nos colocando em estados de alerta e reatividade constantes. Perdemos o centro, perdemos a escuta, perdemos a imaginação.
E aqui, mais uma vez, a criatividade aparece como resistência. Não como produção de coisas, mas como reinvenção da vida. Como diz Gloria Anzaldúa, somos seres fronteiriças — habitamos muitos mundos e pertencemos a todos e a nenhum ao mesmo tempo. Essa condição, embora dolorosa, é fértil. Criamos a partir das rupturas, das margens, dos entre-lugares. A imaginação é o que nos permite atravessar o deserto simbólico e inaugurar novos caminhos de existência.
Por isso, criar não é um dom, é um direito. Um direito que precisa ser praticado todos os dias, nas pequenas ações cotidianas: ao escolher o silêncio em vez de tagarelar, ao dançar sem motivo, ao dizer “não” com firmeza, ao bordar uma palavra enquanto chora, ao cozinhar com o saber do que alimenta (ou envenena). A criatividade de que falo não é sobre fazer mais, mas sobre colocar alma naquilo que toca e que passa por nós. Não estamos loucas. Estamos revolucionando teorias, cotidianizando revoluções. Nada vai nos impedir de lembrar quem somos e por que estamos aqui.


























