Devaneios Matinais
- jurigol
- 3 de jul.
- 2 min de leitura
Acordo com o corpo. O pensamento ainda está em suspenso, meio embriagado pelos sonhos fragmentados da noite — imagens absurdas, como pedaços de pintura abstrata, sem contorno definido. A luz entra pela fresta da janela, dourando o chão, tingindo os móveis com uma cor suave. É nesse intervalo que sinto: algo em mim quer ganhar forma.
O desejo não é de falar, nem de escrever. É gesto. É meu corpo pedindo espaço para existir na tela. Movimento contido, mas pulsante, que só se resolve quando vira cor. E mesmo que ainda não haja pincel na mão, o ato de preparar o café já é um tipo de ensaio.
Percebo o corpo atento. Não como uma presença decorativa no mundo, mas como aquele lugar onde tudo começa, onde a verdade se instala antes mesmo de virar palavra.
A água esquenta. O moedor de café soa como um pequeno motor interno. E eu, entre uma tarefa e outra, penso nas nuances que o fogão não tem. Ele promete precisão com seus números, mas só entende extremos — quente demais ou morno demais. É quase uma mentira: simula gradações, mas só entrega o binário. Talvez por isso a pintura me salve. Ela não mente sobre a transição entre tons. É feita do entre. Daquilo que não se define logo.
O silêncio da casa ainda não foi quebrado. Eles dormem. E eu existo inteira nesse momento suspenso.
Há uma beleza estranha nos gestos repetidos da manhã. Talvez não beleza, mas densidade. Um acúmulo de algo que não se vê, mas se sente. Como se cada ação cotidiana carregasse sua história particular — não uma história grande, mas densa, íntima, cheia de vida invisível.
Penso que é aí que a pintura começa.
Nem sempre se pinta com intenção clara. Às vezes é preciso apenas deixar o corpo dizer. Deixar que ele conte, sem pressa, tudo aquilo que ficou atravessado — como faziam aquelas mulheres que sabiam que o corpo também fala. Não com palavras, mas com traços, cores, gestos. Com camadas.
Pintar, então, se torna uma forma de lembrar — sem precisar narrar.
De sustentar o paradoxo de viver intensamente o que não se pode explicar.
Eles começam a acordar. O som da casa muda. A presença dos corpos preenche os espaços antes vazios. E o instante se desfaz. Mas algo ficou.
Algo que se acumula no peito como pigmento adormecido, esperando o gesto certo.
Mais tarde, talvez, os pincéis toquem a tela. Talvez não. Mas sei que estive ali, inteira, mesmo por um breve momento. E isso por hoje deve bastar.
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