Era do prazer
- jurigol
- 5 de jun. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 27 de jun. de 2024
Escrever essa carta lhe tomou um punhado de horas.
Ficou pensando no que dizer, porquê dizer, como dizer.
Achava morrer uma brincadeira divertida, pensava na morte como uma ação, uma atitude derradeira de entrega, algo de pouca duração, questão de minutos, grande transição, quando cerra-se os olhos, respira-se fundo e emana-se o adeus.
A morte não era um tabu.
A maldade, sim.
Para ela, era mais intrigante
sua origem.
De onde ela vinha?
Era algo inato?
Fenômeno humano socializado?
De raça específica ?
De gênero específico ?
Talvez te pareçam questões de pouca utilidade prática, respondê-las não mudaria em nada a realidade, então, pra quê colocar tanta energia em buscar essas respostas?
tu podes estar te perguntando.
No entanto, buscar explicações fora vital para ela
Vasculhar essas respostas deram corpo pra sua vida.
Corpo com asas,
jornada que se iniciou quando deu-se conta que não era homem branco, andava confundida
Iniciou-se na noção de que ela era o OUTRO, não universal.
Cíclico.
Teve de aprender a perder
não era boa em perder
até ali, era de ganhar, que ela vivia
Entendeu que perder era à primeira vista algo contraintuitivo, mas escondia um campo novo, horizonte aberto, repleto de vida natural e espontaneidade.
Era surpreendente tentar entender a maldade!
Apelidara a sua vida de vida despida.
Brincou de despir-se, então.
Desvencilhou-se de coisas que aprendeu que definem pertença.
Guardou diplomas, refutou uniformes, crachás, horários apertados, planilhas
Lembrou de colocar tudo em contrato, aquilo foi um ato de coragem,
ode ao desejo de entrega.
Retorno a inocência roubada.
Não era um impulso ingênuo, inconsequente, despolitizado!
Não era pra eles, vinha dela agora.
Ficou nela: branca de cor, uma mãe, imigrante, experimentadora.
Tornou-se estrangeira até do seu próprio país.
Simplificou tudo.
Nenhuma hora desse ciclo lhe fora banal.
Viveu de observar!
Observava a maldade em suas variadas formas
Como se atrevia buscar as origens da misoginia,
quem se importa com isso?
Sustentou-se do corpo, da sua força de ação, contabilizou toda a sua libido.
Pensava sobre a ética da vida.
Era utópica, idealista, queria viver da ética e da estética da vida, politizou a sua ousadia.
Viveu do trabalho de criar com o corpo e com aquilo de mais humano nela.
Liberdade política sem sexual.
Quando?
Onde?
Impossível.
Se o corpo é o veículo por onde nasce o futuro, pensava então, não seria estratégico transformar seu tempo maternal em provento?
Coragem do ridículo.
Provocou-se com isso, um tipo de desdomesticação, testando e perfurando os limites da moral hegemônica judaico-cristã, seus dogmas de sofrimentos e merecimentos meritocráticos.
Buscou viver nas fronteiras,
era excitante.
Aprendeu sobre emoções fascistas, observava os sintomáticos por toda parte, caminhou pelo túnel do diabo.
Uma curiosidade voraz a movia, uma gana inconsequente de se tornar meio-bicho-meio-mulher
acho que conseguiu, por fim.
Por que acho?
Careceu de interlocução por onde andava, tempo, paciência, profundidade existencial de outrem.
Não era boa de esperar.
Ficara só incontáveis vezes.
Faltou mencionar um fato-acontecimento-lunático-epifânico que a deslocou no tempo e espaço.
É tarde para detalhes agora.
Disse que terá de fingir de morta outra vez para contar essa história.
Por ora, devo dizer que aquilo dividiu sua existência em dois tempos.
Dera-lhe a percepção da carne, do infinito, do eterno.
Depois daquilo, não se contentou com menos.
Tinha em mãos uma espécie de segredo sagrado, ancestral.
Gargalhar era a sua maneira de lembrá-lo,
resguardá-lo.
Havia descoberto o antídoto da maldade, era importante demais para ser levado a serio.
Àquela altura já tinha se tornado material de objetificação.
Restou-lhe então metaforizá-lo, torná-lo cores, contornos, texturas.
Era uma nova ERA.
Alforriar o querer foi o mínimo que ela pode fazer.
ERA do desejo, foi o que ela instaurara,
foi o que a vida despida lhe trouxera:
O antídoto.
Hoje, morta, em resumo deixou escrito assim:
Curiosa da maldade, descobriu o caminho pelo qual percorre a flor de Lotus.
De lá, virou poesia.
Caso queira encontrá-la, enfrente a sua autonomia, ela é coisa que vem do corpo.
Transgrida, desobedeça sem distrações.
Ela esconde a tua potência de revolução.
Perca o medo de apertar o seu botão.
Fim!
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