Meu nascimento, meu. Meu?
- jurigol
- 5 de jun. de 2024
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Atualizado: 27 de jun. de 2024
Nascimento.
Do latim ‘nascere' - dar à luz, mas a quem se refere?
A quem dá-se à luz? Àquele que chega?, Àquela que entrega-se à luz?
Porque chama-se de luz?
Isso me intriga. Pensar no elixir ocitocina me intriga.
Em termos médicos nascimento é expulsão, retirada.
Penso em assalto. Meu coração dispara, tenho medo, adrenalina.
A luz seria o novo? O ser? Consciência?
Complexo demais?
Não entendo bem.
Acho assustador.
Revela tanto, que cega.
Nos confins da fronteira oeste gaúcha a vida acontece meio de supetão, meio sem frescura, sem rodeios, entre trote e a galope, referências de animais de quatro patas, cavalos, éguas, bois e vacas. A dureza é uma marca, um símbolo de força, aprende-se cedo.
A primeira vez que nasci foi rápido, difícil foi juntar as palavras, fazer floreios para contar como que fiz, como fizemos, como nos fizeram, eu e ela.
A cólera.
Começo com a forma como lembro da jovem mulher grávida de outra.
Buchuda, mulher de bucho grande.
Bucho, de músculo, estômago de mamíferos.
Assim rememoro origens.
Era madrugada quando tentei contato com o mundo de fora, a éguinha caborteira dava seus primeiros sinais.
No primeiro enfiar de dedos na mulher, viu-se que não era a hora, que demoraria para o baile começar. Dali, daquele momento em diante, ela aguentaria o sinal do insuportável que a conduziria para o hospital.
Não tinha experiência, seguia seus próprios instintos, confiança em si, muito própria dela - a qual nunca lhe faltara.
Os encagaçados na volta, antagonistas do gozo, da criação, do selvagem, do natural, eram figuras que não estavam tão organizadas em exército como viriam a ser algumas décadas depois.
Era fim da manhã quando os fisgos apertaram e ela foi levada para o hospital, na companhia da sua cunhada. Caminhavam sem parar pelos corredores como lhe fora prescrito. Horas depois, não muitas, a bolsa rompeu e era chegada a hora do despontar da aurora.
Não. Meu nome não veio a ser aurora! Nem seria, não estava na lista.
Não era sobre o bebê, era antes disso, era junto com isso, era dela, não era o bebê.
O bebe poderia ser guri, não acho que o sexo era uma preocupação. - Ah: lembrei! Henrique, era pra ser Henrique. Ela me disse que gostava muito desse nome, porém o marido implicava com o ‘H’ do nome. Letra silenciosa, ele dizia, não gosto, inventor de superstições, ele não gostava do nome Henrique, com H e, tampouco sem.
Nasci em agosto, o mês do cachorro louco. Tenho sol em leão, minha mãe sempre diz que eu tenho estrela, fazendo menção, talvez, a minha rebeldia carismática, sei lá.
‘A mulher vai dar cria, a mulher vai dar cria’, ouvia-se os gritos nos corredores do hospital. Minha mãe foi levada então para sala de parto, o médico chegou a seguir… Ela conta que a colocaram na mesa de parto.
Mesa? Ah, sim, né mãe, te colocaram naquela posição de frango assado! Sim, sim, sei bem. Entre gritos e sussurros, aquele banzé do ‘força de cocô-mãezinha’, o rebento despontou.
Pronto, nasci. Fui nascida, fomos. A filha e a mãe.
Achei frio tudo.
Acho tudo muito frio, sem cor, liso, escorregadio, cinza, opaco, gélido de detalhes.
Ouço que depois disso minha mãe, jovem, ficou sozinha.
Antes ela não estava? Pensei eu.
Tenho que controlar as perguntas. Ah, e a forma de fazê-las.
Peguei a fama de chata, rabugenta, briguenta, até de burra já fui chamada.
Era pra pensar, pensar criticamente era importante.
Questionar era importante, me diziam.
No entanto, tinha que ser do jeito certo, nunca entendi qual era jeito certo. Inocência surrupiada.
Minha avó materna ficou uns dez dias com ela e voltou para a sua vida, ela morava em outra cidade. Ficou a empregada, a quem tenho amor, a quem tenho como segunda mãe. Minha mãe preta.
Elas me disseram que eu chorava muito. Minha mãe me amamentou por algumas poucas semanas e depois interrompeu. Estava exausta, sozinha, sem dormir, depressiva. O médico a orientou que parasse a amamentação. Teria sido a sua prescrição para tratar o cansaço e o abandono do qual sofrera.
Uma vez tive um sonho no qual eu me via bebê sobre uma cama e chorava, chorava, sozinha até cansar. Um abandono desesperador. Meus músculos da face se contraíam todos, a boca aberta, e a voz daquele bebê aos gritos até sucumbir de cansaço.
Acordei desse sonho pensando que era um sonho de querer nascer.
Como eu poderia ter nascido sem que nenhuma mulher tivesse nascido antes de mim? Biografias suprimidas delas mesmas, saberes femininos difusos, benzedeiras, rosários, nomes de fármacos modernos e histórias trágicas e acidentes.
Quando eu tinha 3 anos, minha irmã chegou. Contaram-me que eu derrubei ela do carrinho, de tanto que eu queria vê-la e ninguém me mostrava. Eu me pendurei no carrinho e o carrinho virou. Ela não se feriu.
Eu,
bem,…
eu também não, foi o que contaram.
Contam que eu era muito ARTEIRA e DESBOCADA.
Hoje em dia eu amo essa palavra - arteira!
Fui olhar no dicionário e vi que para além da raiz ‘arte’, arteira quer dizer auspiciosa, maldosa. Será que era isso que eles queriam que eu pensasse de mim?
Não gostava de elogios, achava chato, usavam sempre o mesmo repertório, subestimavam a minha inteligência.
Nasci madura, me parecia.
Lembro que sentia muito, intensamente.
Contaram do marido da manicure, na tentativa de me agradar disse, ‘que amor essa guriazinha’ e que minha reposta foi a de um bicho arisco e desbocado. Minha mãe nem sabia que eu já tinha cú e boceta no meu vocabulário.
Tudo isso do nascer me intriga.
Quando tinha uns seis anos minha bisa me contou que o dia do meu nascimento foi um dia lindo. Que meu pai entrara em casa, onde todos estavam a espera de notícias, gritando ‘nasceu a minha filha juliana!, nasceu a minha juliana!’ ela repetia.
Cada vez que ouvia, de alguma forma sentia que nascia com ela, outra vez na história da bisa, me sentia criança, não seria o caso nos demais nascimentos.
Tenho nascido para além do espelho, enquanto espero impacientemente pelo antídoto contra a cegueira, a complacência, a covardia.
Insisto no corpo que possui o útero, que sabe que útero é um tipo de cérebro, que gesta a luz, que percebe a intensidade da luz, que insurge e transborda em metáforas e revoluções pacíficas.
Ou não.
Órgão erógeno, êxtase, ocitocina, clímax, gozo, prazer.
Prazer, prazer!
Coitada dela, ouvia atrás da porta, tem tanto potencial, lá, dependente do marido, escondida no lar, sem fazer nada, sem fazer nada pra ela, colada na cólera.
A cólera, a minha outra.
Eu,
dissidente.
Mentiu quem disse que nascer é simples.
Devir-mulher tem urgência.
Enquanto isso preciso nascer por todas elas.
Resistir por todas elas.
Até pelas assassinas de si próprias.
Por todas elas quem?
Ah! Aprendi que são 7, são sete antes de mim.
Nascimento, meu. Meu?
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